15 de novembro de 2009

VIVER PARA CONTAR

Após ter sido diagnósticado com um câncer linfático, o escritor, jornalista e editor Gabriel García Márquez decidiu contar a história de sua vida na autobiografia "Viver para contar", publicada em 2002.

Leia um trecho do livro:
"Minha mãe pediu que fosse com ela vender a casa. Havia chegado a Barranquilla naquela manhã, vinda do povoado distante onde morava minha família, e não tinha a menor ideia de como me encontrar. Perguntando aqui e ali entre os conhecidos, indicaram que me procurasse na Livraria Mundo ou nos bares vizinhos, onde eu ia duas vezes por dia conversar com meus amigos escritores. Quem deu a indicação avisou: “Vá com cuidado porque são uns doidos varridos.” Chegou ao meio-dia em ponto. Abriu passagem com seu andar ligeiro entre as mesas repletas de livros, plantou-se na minha frente olhando-me nos olhos com o sorriso pícaro de seus melhores dias, e antes que eu pudesse ter qualquer reação disse:
— Sou sua mãe.
Alguma coisa havia mudado em minha mãe que me impediu de reconhecê-la à primeira vista. Tinha quarenta e cinco anos. Somando seus onze partos, havia passado quase dez anos grávida e pelo menos outros tantos amamentando seus filhos. Tinha ficado completamente grisalha antes do tempo, os olhos pareciam maiores e mais atônitos atrás de seus primeiros óculos bifocais, e guardava um luto fechado e sério pela morte de sua mãe, mas ainda conservava a beleza romana de seu retrato de casamento, agora dignificada por uma aura outonal. Antes de qualquer coisa, antes mesmo de me abraçar, ela disse com seu estilo cerimonioso de sempre:
— Venho pedir a você que por favor me acompanhe para vender a casa.
Não precisou dizer qual, nem onde, porque para nós só existia uma casa no mundo: a velha casa dos avós em Aracataca, onde tive a boa sorte de nascer e onde não tornei a morar desde que fiz oito anos. Eu acabava de abandonar a faculdade de direito depois de seis semestres, dedicados sobretudo a ler o que caísse em minhas mãos e a recitar de memória a poesia irrepetível do Século de Ouro espanhol. Já havia lido, traduzidos e em edições emprestadas, todos os livros que teriam me bastado para aprender a técnica de romancear, e tinha publicado seis contos em suplementos de jornais, que mereceram o entusiasmo de meus amigos e a atenção de alguns críticos. Ia fazer vinte e três anos no mês seguinte, havia fugido do serviço militar e era veterano de duas blenorragias, e fumava cada dia, sem premonições, sessenta cigarros de um tabaco feroz. Alternava meus ócios entre Barranquilla e Cartagena das Índias, na costa caribenha da Colômbia, sobrevivendo feito um nababo com o que me pagavam pelos textos diários no El Heraldo, ou seja, quase menos que nada, e dormia o mais bem acompanhado possível onde quer que a noite me surpreendesse. Como se a incerteza sobre minhas pretensões e o caos da minha vida não fossem suficientes, um grupo de amigos inseparáveis estava disposto a publicar uma revista temerária e sem recursos que Alfonso Fuenmayor planejava fazia três anos. O que mais eu podia querer da vida? "

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